domingo, 14 de agosto de 2011

a minha prece



Escuta-me, Grande Espírito,
pois meu peito me fala palavras
que o vento não ousa soprar
e o batuque do meu canto reúne
as nuvens escuras da borrasca.
Cresce em mim, como outrora,
uma ânsia serpentina
por partir sem rumo,
minha cidade é uma cova
e sua alma está usada.
Os campos, montanhas, rios e florestas,
os rostos do mundo,
que me aparecem somente em sonhos,
assombram os meus olhos
quais fantasmas inquietos
na minha libido.
É preciso conhecer o que é meu,
é preciso doar-me ao domínio
do éter, sem ressalvas.
Escuta-me, Grande Espírito,
pois meus pés pisam
caminhos imaginários
e já não sentem mais alegria
nas velhas veredas,
eu tenho adiado os dias,
preso no que eu era
e no que estou para me tornar.
dizem que o homem morre
pelos choques que sua alma sofre.
Sinto-me morrer
por muita alma
contida
num só lugar.
Escuta-me, Grande Espírito!

-

O doce perfume da pele dela,
qual incenso de eras passadas,
escorrendo pelos nossos lençóis bagunçados
enquanto eu me levanto,
vestido na manhã,
ao canto dos pássaros
que saúdam um sol sonolento.
E tudo em mim
é pleno como o fluxo de um rio
sem finais,
apenas deslizando pelas encostas
do mundo.
Ela dorme ainda,
alçada às plêiades brilhantes,
a mundos longínquos
e eu não posso acompanhá-la,
mas nós caminharemos
no coração de um arco-íris
assim que o dia lhe beijar
as pálpebras.
Eu a observo entregue ao nada,
meu peito me pesa
com uma alegria indômita
que não pode ser contida
apenas por ele
e a tela da manhã
é a aquarela mais pura
que meus olhos já vislumbraram,
de repente,
eles rompem-se em lágrimas
e eu estou desarmado,
não tendo nada mais que a mim mesmo
para enfrentar
a brisa da sua voz
e nós andamos de mãos dadas
por jardins imaginários,
por campos de tulipas sempiternos
em pleno coração
da cidade.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Memórias dum Beduíno

"... da noite, qual mar revolto, soltam-se os véus sobre mim,
trazendo angústias que me põem à prova.
quando ela saltou como um corcel negro e tombou, exausta,
sobre o próprio peito, bradei:
oh, noite longa, teus olhos não se abrirão na aurora?
manhãs melhores não surgirão de ti?"
- Imru' Al-Qais


Afogo os meus olhos no orvalho das noites passadas,
paremos, amigos! Me lembro daquela donzela

que aqui eu amei, percorrendo umas dez luas juntos
até sua tribo deixar esse oásis aos ventos.

Os restos das tendas aos olhos ainda se mostram,
não mais que retalhos das feras que aqui se alimentam.

Seu cheiro de mirra ressoa nos ares da mente,
assim como escorrem da minha retina as lembranças.

Enquanto lamento meu fado, os camelos descansam,
meus bravos amigos dizendo: “não morras em lágrimas,

pois todas as tendas possuem donzelas e leitos.”
De fato, por várias chorei à memória do amor.

Pouco antes de Lídia, nos seios de Adara dormia,
E às curvas de Ghayda rendia-me, e a Rasha!...

Tal feito, por perto dum lago eu passava sozinho,
três jovens banhavam-se, os trajes jogados às pedras.

Como eu almejasse provar as virtudes das damas,
com posse dos trajes me expus em diversos sorrisos.

“confisco-os! Pois traços tão belos aos olhos ocultos
são como os cantares das aves no ouvido dos surdos,

ou como as fragrâncias dos leitos aos homens eunucos,
tal qual as memórias de outrora aos de mãos calejadas.”

e o susto da trova rompeu-se em olhares e risos,
então nós banhamos as águas co'as nossas essências...

… Ah, amigos! O Tempo recepta as carícias roubadas
igual às areias que encobrem relíquias antigas,

e o ouro ao oblívio do pó se mistura sem brilho
nos passos dos Dias e Noites, vedando-se aos olhos.

Houvera também uma moça por pais protegida,
aos dotes contida, velada das artes adultas,

que deu-se a driblar meus desejos por dias e noites,
fazendo das minhas faíscas um fogo insistente.

Nas horas furtivas, coberto com o manto das Plêiades,
em pés de ladino, adentrei a sua tenda em seu sono.

Dormia dispersa nos véus, as suas frutas desnudas
qual duas estrelas brilhando nos fuscos lençóis.

Seus olhos lembravam as pérolas negras dos mares,
os lábios carnudos quais gomos, saliva de vinho.

Beijei-lhe o pescoço, ela em sonhos tremia de anelos
e então desfrutei-me da polpa do fruto sagrado.

Mas hoje me cortam, qual gélida lâmina, as lágrimas,
perante o oceano da Noite, ao fumar da narguila.

Qual brumas do fumo, os amores se esvaem nos ares,
e ofuscam-se no éter da mente, mesclados à angústia.

Mas vamos, amigos, pois muito em pesares paramos!
Já escorre das turvas veredas o sangue da Aurora.

O Sol, qual guerreiro indomável, com sabre dourado
decepa os domínios da Lua, sultão das tristezas.

O harém das estrelas se banha nas águas do Dia
e o canto dos pássaros leva o escuro ao seu leito,

agora vislumbro as feições das montanhas distantes,
outrora nas trevas difusas, a Vida floresce!

Olhai ao redor! Tudo é vivo! Esqueçamos as ânsias,
afogo os meus olhos na vinda dos dias futuros!

canto de cura

Chegaste num manto de trêmulas luzes,
Meus olhos se tornam neblina
E ofuscam-se, qual lua
Perante a penumbra dos céus,
Tambor do trovão,
Yô ayê!
Desceste o caminho da estrela de brumas,
Meu corpo se torna fumaça,
Murmúrio das águas que caem,
Chocalho das chuvas,
Desceste o caminho da estrela de brumas,
A ponte do arco-íris,
Murmúrio das águas que caem,
Chocalho das chuvas
Yô ayê!
Teu canto percorre horizontes distantes,
Meu rosto é miragem,
Rumor do tornado iminente,
A voz dos ventos,
Teu canto percorre horizontes distantes,
A música da alma,
Rumor do tornado iminente,
A voz dos ventos
Yô ayê!

gnawaa

I
Minha voz é um trovão que clareia tormentas,
Entretanto, ao legado dos ventos, sussurro.

as folhas secas

observo as folhas secas dançando ao vento,
parece que o tempo se retém ao compasso
da queda. E elas rebolam ao éter
alheias ao carros que gritam,
aos prédios insones,
às vozes sem ritmo...
apenas dançando com os finos pingos
duma chuva rasteira
que acaricia as paredes do mundo
sem pressa, sem julgamentos.
As folhas se jogam àquele
breve momento de eternidade
e caem de cara no chão terroso
e findam-se,
somente testemunham, caladas,
os passos fugazes,
a corrida de tudo.
Eu danço com elas em dias de ressaca
e minha mente se torna
a chuva rasteira
que toca o mundo
sem julgamentos, sem pressa
porque o tempo se retém à nossa queda
e esse é o meu baile,
querida.

aos meus amores

ela chega vestindo um manto de flores,
seus pés gentilmente
montando os perfumes da brisa
e os pássaros,
despertos por um sol displicente,
a homenageiam pintando
paisagens fugidias
no quadro dum céu azulado,
seus cantos ecoam
em hinos à Vida,
o mundo se preenche de cores
quando ela chega
com sorrisos esvoaçantes
e bate na minha porta,
dança no meu quarto,
se espalha pelos meus lençóis,
incendeia-me o peito
e depois se vai, prenhe de luz,
de carona com o vento,
acenando-me docilmente.
E as folhas caem das árvores
quais lágrimas douradas,
os céus escurecem,
neblinados de recordações,
a vida se recolhe
à espera da sua volta,
o mundo descansa do cio
enquanto eu a aguardo sem medos,
pois nossa paixão é livre
e dança conforme a melodia
dos dias e noites:
ela vem feito Primavera
e vai-se qual Outono
e retorna, com sua aura ensolarada,
vestindo um manto de flores.

prece

Grande Espírito, escuta-me,
pois meu coração bate com o batuque da Terra,
e meus pés a pisam sutilmente,
meu sangue flui nos rios
e meus lábios os beijam com carinho,
a voz que falo molda-se nos ventos
e tudo o que penso
se alia ao fluxo do cosmos,
pois não creio haver verdades concretas
senão a própria verdade
que se reflete
na dança das ervas.
Escuta-me, pois minha vontade se faz
no chocalho das folhas
e minhas mãos só pedem para si
o que elas podem segurar,
meu espírito se agarra à luz das estrelas,
das quais eu descendo,
e quando meus olhos, espelhos
dos olhos dos meus irmãos, as vislumbram,
um carinho repleto por tudo me doma,
e tudo o que sinto
se alia à cadeia dos elos,
pois não creio haver verdades concretas
senão a própria verdade
que se reflete
no canto dos pássaros.
um parente de tudo que vive eu sou!
Um parente de tudo que morre eu sou!
Um parente de tudo que permanece eu sou!
Escuta-me, Grande Espírito,
e chova em mim feito as chuvas primaveris
que reciclam o ânimo das tuas manifestações,
pois meus passos tentam seguir as boas veredas,
mas hoje, vejo-me distante de meus irmãos,
mesmo que presente,
suas vozes não mais ecoam
com a melodia do zelar,
eu sou uma flecha ao vento,
eu sou um arqueiro de olhos vendados,
eu sou um alvo longínquo,
um prisioneiro do meu próprio recipiente,
cativo por tudo que se deixa ser preso
e sabendo que o único cárcere
que deve nos escravizar
é a Liberdade.
Escuta-me, Grande Espírito!

canção

à deriva dos olhos,
ao acaso das águas...
eu espero
a neblina baixar
e um navio
de lembranças
me levar novamente
para ti.

Novamente
para a terra.

Ao silêncio do vácuo,
ao espaço da voz...
eu espero
as estrelas nascerem
e uma Lua
de paixões
me levar novamente
para ti.

Novamente
para a Terra.

conto maya

E um homem se sentou sozinho,
Em profunda tristeza.
E todos os animais chegaram perto dele
E disseram:
“não gostamos de te ver tão triste,
Nos diz o que tu quer,
E nós te daremos.”
O homem disse:
“eu quero ter uma boa visão”;
O abutre respondeu:
“tu vai ter a minha, então.”
O homem disse:
“eu quero ser forte”;
O jaguar disse:
“tu vai ser forte que nem eu”.
E aí o homem disse:
“desejo saber os segredos da Terra”;
A serpente respondeu:
“eu mostrarei eles pra ti”.
Então foi assim com os animais,
E daí, quando o homem teve todos os presentes que queria,
Ele foi embora.
E aí a coruja disse pro resto dos animais:
“agora o homem sabe muito
E é capaz de fazer várias coisas...
De repente,
Estou com medo.”
O veado disse:
“o homem tem tudo que ele precisa,
Sua tristeza irá embora!”
A coruja respondeu:
“Não!
Eu vi um buraco no homem,
Profundo como uma fome que ele nunca vai saciar.
E é isso que faz ele triste,
E faz ele querer coisas...
Ele vai continuar pegando e pegando
Até o dia que o mundo vai dizer:
- eu não sou mais
E não tenho mais nada pra dar.”